quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Laços de Sangue

Sentado, lá estava ele. O semblante de decepção não era singular, tampouco dissimulado. As tentativas falhas eram colecionadas, pouco a pouco, em seu armário secreto. Talvez alguma homossexualidade saísse dali. Talvez. O homem de muitas variáveis, era marcado por uma grande e ofensiva constante. Era ela, imortalizada em versos, era ela. Sempre foi e talvez, sempre será.

Diferente dos atos libidinosos, hipócritas, insensíveis e cruéis, que a vida lhe proporcionara, era um homem imaculado. Honesto, justo. Nela, a única chance da quebra do código de conduta que ele mesmo havia inventado. Código que por tanto, zelou, cuidou e amou. Sem ele suas veias secariam, seus pulmões murchariam. Não havia meio diferente de ver o mundo, senão por esse imperativo.

No espelho, entortava o canto da boca, à direita seu sorriso, à espera de um novo tique nervoso que seu quociente de beleza afetasse. Ainda que distante do mundano, por harmonia lutava. Por ela, só por ela. Outras tentativas já haviam naufragado, absolutamente. O sotaque inventado, foi infrutífero. O andar maturado, pífio. E o olhar incerto, pouco contundente.

Era sim, um sofredor. Mas um sofredor que carrega sua cruz com ventura. E que criava ali então um paradoxo. Como sofre, se na dor, encontra contentamento? Às vezes se perguntava. Resposta alguma achava. E sem resposta, se voltava para ela. Nas mãos que um dia afundaria em suas pernas. Na seiva de sua boca, que tal bálsamo, beberia. Nos olhos fixados nos dele, olhos negros, grandes e talvez esbugalhados. No cabelo. No cheiro. Bastava um devaneio e a cruz era agora grafeno.

Precisava levar a vida. Ninguém olhava por ele, mas ele queria olhar por alguém. E não tinha ninguém para olhar – fato tolerado sem afinco. Ainda que pequeno o incomodo, a solidão, tal tormenta, esporadicamente o visitava. E para isso, ele tinha o tabaco. Procurou pela casa o maço de cigarros, espantado pela falha da memória, tão fiel e companheira inseparável. Incansavelmente, com persistência procurou. Nada no quarto, quiçá na sala. Sentiu algo em seu bolso. Lá estava, assim como ela em sua vida, por todo o tempo, grudada em seu corpo.

Com vagar, riscou o isqueiro e carburou, em chamas profanas, seu cigarro. As tragadas já não curavam a fissura, que incólume, dele sugava a chama vital, daquilo que com desdém ele chamava de vida. Tragava a fumaça com fúria e, apesar do vício, a fumaça odiava. Assim como a fumaça, o gosto que o cigarro trazia à boca, era literalmente intragável. Na sucessão, um ou dois copos de água, que anestesiavam o cheiro de morte, que aquele hábito impiedoso deixava.

Não tardou, e fez o que repetia incessantemente, na tentativa de conhecer o prazer que a vida nunca lhe proporcionara. Com vergonha de si mesmo, abriu a porta do banheiro e apesar da morada solitária, trancou a porta. Sentou-se. E começou. Tocou-se, com tal vigor que expôs feridas em seu membro. E nela, não pensou. Jamais entraria naquela sujeira a figura dela. Gozou. Se deleitou. E se deprimiu. Como sempre. Esperou alguns minutos para que o seu membro se enrijecesse novamente, e repetiu. E novamente: se deprimiu.

Estava cansado daquela situação. Resolveu andar pela cidade, sem rumo, mas certo de seu destino. Desceu as escadas, temia o elevador. Se morasse no décimo andar, provavelmente deixaria o temor de lado, como já fizera algumas vezes. Como sua morada insalubre passava o dia com as cortinas fechadas, ao abrir a porta do edifício, os olhos defendeu. Claridade cortante, inóspita em seus olhos.

Se admirou com a figura de um pedinte. Nele, nada de ordinário. Talvez fosse isso o motivo da admiração: a similaridade, identificação. Ambos compartilhavam o fato da pequenez na humanidade. Nenhum grande feito. Nenhuma grande ambição, mas ainda assim, separados por um vale social. Passou a observar o pedinte. Reparou que os dentes eram ralos – saúde dental deveras danificada. Seus pés calçavam chinelos – algo que odiava. Chinelos eram sujos, desconfortáveis, expunham uma parte tosca do corpo, que para ele deveria ser escondida.

Passou a se indagar, mais uma vez, o motivo do ódio imponente a tais calçados. Imaginou que as surras na infância eram sempre marcadas por eles. Encerrou o assunto, preferiu não adentrar no mérito – lembrar para ele era algo doloroso. Se perguntou se era esse o motivo de só conseguir gozar humilhando ou imaginando mulheres humilhadas. Sentiu-se um lixo. Na lixeira que o encarava, pensou em se prender. Tentou ignorar o pensamento. Não conseguiu.

Como sempre, nas horas difíceis, o homem da exatidão começava sua série de relativizações. Deus estava morto, isso era uma máxima. Se não havia Deus, não deveria haver propósito. Sem propósito, não havia bem e mal. Havia o indiferente. Havia o florescer da vontade iminente de um suicídio incolor. Havia o caos e o precipício. Havia o breu que o prendia ali.

Precisava ir ao trabalho, estava atrasado. Diferente do usual, pegou o segundo ônibus que passava no ponto, naquele dia. O dia já estava se tornando estranho e fora de sua zona de conforto. Ainda atônito, a situação se agravava. Passou a lembrar da infidelidade de seu pai, e toda a aura nebulosa que aquela situação carregava. Lembrou-se de como sentia-se culpado por tal comportamento do pai, de tal forma que vozes invadiram sua cabeça, gritando culpado.

Sem a crença em Deus, devaneou sobre o inferno, e sobre a maldade no mundo. Em sua cabeça, a permissão de Deus para que o mal existisse. Naquela cabeça havia uma certa rebeldia contra o criador, que para alguns reservava a eternidade num mar de rosas e para outros, o fogo eterno. Dilemas. O dia certamente estava agitado. O ônibus parou. Agora alguns passos o separavam do querido trabalho. Ali tudo, ao contrário do mundo ao seu redor, fazia sentido. Os números eram enigmas, esperando para serem explorados. As variáveis seguiam padrões lógicos e as constantes era imutáveis. O fardo de ser um professor, era completamente sobreposto pelo deleite de ser um pesquisador. Os alunos incapazes eram substituídos pelos avanços com o seu nome publicados. O cansaço era enganado pela sede de um conhecimento inexplorado.

Fez algumas contas, rabiscou o quadro. O foco agora se esvaia, a ideia se maturava. Talvez aquele revólver escondido debaixo do colchão lhe fosse útil. O pensamento era novamente dela. Obsessivos, persistentes. Talvez fosse a única maneira, decidira que não morreria sem comungar a carne com a sua sonhada donzela. Decidiu que seria hoje. Sem conseguir trabalhar, enrolou durante a tarde debruçado sobre algumas equações. Infrutíferas. E como não seriam? A equação escondia o plano de ação. A cada minuto que se passava, se certificava cada vez mais – era a atitude certa a se tomar.

Tomou o ônibus de volta, planejando incessantemente. Não teve tempo de observar a beleza que o cercava, nem o pivete que roubava sua carteira. Nem se importaria na verdade, exclusivamente importante agora era o que se sucederia.

Chegou em casa. Furiosamente foi para o seu quarto e procurou pela arma. Sem muito esforço, encontrou. Por um momento se deliciou, por outro, o sentimento de culpa o tomou. O desejo foi maior. Esperou a noite cair, para se certificar que ela estava em casa. Esperou pacientemente, apesar da agonia que o possuía. Saiu sem acenos.

Nada de ônibus, dessa vez. Um táxi. Entrou e nada falou além do endereço. Duas almas imortais e mudas, passeando pela cidade. Alguns minutos e o destino estava alcançado. Disse ao porteiro.

                - Quero ver a Madalena. Ela sabe quem é.
                - Suba.

A hora estava chegando. O nirvana estava cada vez mais perto. Subiu, dessa vez não pelas escadas, estava sedento. Tocou a campainha. Tocou novamente. A porta se abriu. Sacou a arma e disse que se quietasse, não gritasse. Antes do silêncio, ela perguntou:
               
                - O que você quer?
                - Você sabe.
                - Já falamos sobre isso.
                - Estou decidido.
                - Abaixe a arma.

Sem saber o que fazer, colocou a arma no chão. Ela o puxou pela camisa e o beijou. Sussurrou em seu ouvidos algumas palavras, não para que ele ouvisse, mas para que ele se aproximasse e sentisse o aroma do hálito dela. Sem nenhum pudor, os dois se defloraram. Virados um para o outro. Virados de costas. De lado. Em pé. Inenarrável prazer. Esperança, virtude. Subitamente acabou. Antes que alguma coisa pudesse se suceder, mais rápida que ele, pegou a arma. Sem misericórdia, não escutou nem últimas palavras. Puxou o gatilho, o matou. Em seguida, banhada de prazer e refogada com vergonha, colocou o revolver contra a própria cabeça. Avistou um poema no bolso do agora já defunto. Sem ler, mas imortalizada naqueles versos, teve a certeza. Atirou. Finalmente agora, um casal.


FIM